Claro como o dia, impossível de esconder: o Estado praticamente transferiu para o sistema financeiro o direto de emitir sem restrições. Mas, quando se trata de medidas sociais, auxílio emergencial, investimentos em serviços públicos ou infraestrutura, a cantilena monetarista neoliberal mobiliza sua charanga estridente de restrições em nome da responsabilidade fiscal.
Dois pesos e duas medidas: ao sistema financeiro é permitido, quase ilimitadamente, emitir dinheiro ou gerar dívidas – que “no és lo mismo, pero és igual”. Mas, quando se trata de o Estado fazê-lo para atender interesses sociais, são levantadas vigorosas objeções políticas e legais. Na verdade, o que está em jogo é o poder político de regular as relações sociais por meio da moeda. Desde a crise de 2008, caiu a máscara do sacralizado fuscalismo monetarista ao emitir moeda e aumentar dezenas de vezes a quantidade de moeda em circulação para salvar bancos, mercados de títulos e concentrar o poder e as riquezas do mundo como nunca antes. E se isso não gerou inflação, por que a simples mudança de objetivos da destinação do dinheiro emitido nas mesma condições de emissão haveria de gerar?
Diante desses fatos de contundentes constatações inegáveis, surgiu a inevitável pergunta: por que não se pode fazer o mesmo para criar novas relações econômicas e sociais solidárias, livres das garras mercantis, da dinâmica do mercado e do caráter de mercadoria? Por qual mandamento divinizado seria impossível aplacar as desigualdades, construir serviços públicos universais e de qualidade como instâncias da existência coletiva, converter a economia em favor da sustentabilidade, da natureza e da vida? Na verdade, o que impede que isso seja feito é o poder da minoria que controla as finanças mundiais. Mas as condições para mudar esse jogo estão amadurecendo.
Com a pandemia do Covid-19, a necessidade de isolamento social se impôs pela pressão da opinião pública em defesa da vida. Pela primeira vez na história, a convocatória do comparecimento ao trabalho como gesto patriótico (feita inicialmente por lideranças de países poderosos como Trump, Boris Jonhson e Macron) não surtiram efeito. Mesmo as tentativas inicias do governo chinês de tratar como alarmismo as denúncias sobre a gravidade da doença, tentando manter a aparência de normalidade – como se viu depois na maioria dos países – logo caíram por terra.
Diferentemente do que ocorreu em outros momentos históricos como nas guerras mundiais, por exemplo, a maioria das pessoas se opôs ao imperativo “patriótico” da ordem econômica e recusou-se a colocar a vida em risco para ir trabalhar. O mundo parou como nunca antes havia parado. Este acontecimento inusitado introduziu por necessidade concreta, em nível mundial, o debate sobre a renda básica combinada com uma avalanche de discussões teóricas sobre a Nova Teoria da Moeda, que abrem – dentro da nova situação – um novo campo de luta para a emergência de um programa de medidas econômicas pós capitalistas.
A afirmação desta possibilidade se dará ou não como resultado de uma luta teórica e prática inaugurada mundialmente com a pandemia e suas consequências. Pois se é fato incontestável que os bancos centrais no mundo inteiro garantiram a emissão de moeda em larga escala desde de a crise de 2008; se é fato que a emissão de moeda duplicou 50 vezes nos Estados Unidos da América; se é fato que, aqui no Brasil, o financiamento da dívida pública, as operações compromissadas e a recente autorização dada ao Branco Central para a compra de títulos do mercado financeiro nada mais são do que emissão de moeda (ou dívida) que pode chegar a 30% do PIB; se e fato que toda essa emissão de moeda e aumento de liquidez no mundo não causou inflação; se é fato que toda essa liquidez injetada no mercado em NADA se traduziu como benefícios produtivos ou sociais e resultou em capitalização dos bancos, do mercado de títulos, derivativos e, por fim, das bolsas e em consequente concentração de riqueza e poder em uma ínfima minoria; por que então não será possível que a emissão de moeda e o controle da dinheiro volte aos estados e possam financiar uma nova utopia social, econômica e ambiental?
Este, de fato, poderá ser o grande debate que marque o início histórico – e não cronológico – do século 21.
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